O amor é uma luta

Quando criança, aprendi que o amor estava nas pessoas e era passado de uma para outra através do beijo. Era mantido seguro no aperto das mãos entrelaçadas e concretizado em uma troca de alianças. Quando duas pessoas se amavam, o fato era celebrado por todos, até virava festa. A união era eterna e levava a um só lugar: o tal do final feliz. 

Aí eu cresci. 

O amor que eu sentia não era celebrado. Era um erro. Algo a ser escondido em um diário dentro de uma caixa embaixo da cama. Gostar de alguém era um perigo. Os olhares eram espiadelas. O contato se dava no mundo das ideias. O amor era solitário. Não era sentido, mas almejado. Vinha em forma de escrita, de música, de lágrimas. Mas não vinha nunca. Eu sentia que era o único a amar assim. Não entendia quem eu via no espelho. 

Aí eu me encontrei. 

E junto comigo, toda uma comunidade. O amor voltou a ter sentido. Passou a ser sentido. Ficou maior. Tão enorme quanto uma massa de pessoas descendo a avenida Paulista. As mãos dadas passaram a ser tão importantes quanto os punhos cerrados jogados ao alto. A escrita não é mais traçada em letras miúdas, vem em letras garrafais. A música não é mais só minha, é um canto em uníssono – envolvente, estremecedor, efervescente. Em ebulição. Uma união que não é presa por uma aliança, mas por um elo comunitário. O amor não é nada daquilo que eu aprendi. O amor é uma luta. Uma batalha diária pelo seu próprio sentido. É olhar-se no espelho e sorrir. É olhar para o outro e se enxergar. É uma longa caminhada rumo a um estado de pertencimento, de harmonia e de recognição. 

E eu acho que cheguei. 

Em POA

Passar o finde em Porto Alegre
é sempre dar uma voltinha no passado.

As ruas, os bares, os sons,
é tudo muito familiar.

Distante, mas presente.

As noites são pequenas,
mas imensas.

Como sombras que se agigantam
e distorcem as proporções.

É uma comunicação
com um eu passado.

Um calçar de sapatos
de números menores.

Um reacender
de luzes interiores.

E uma temporada extra
de uma nova/velha vida.

Annie

Mantenho os pés constantemente na estrada.
Cabeça erguida e olhos em frente.
Troco o luto pela luta.
Sigo e sigo continuamente adiante.
Se os pés cansam, voo.
Por entre as nuvens, avanço.
Vou até a aventura, não espero ela chegar até mim.
Prolongo os minutos das minhas derradeiras 24 horas.
E danço, sempre – com ou sem música.
Mesmo que porventura eu seja a última de nós.

à Annie Wersching

Antes de você

Fotografia: Angelina Casado

O seu mundo morre antes de você. Enquanto você envelhece, o que você ama vai ficando pra trás. Suas ideias modernas são chamadas de retrógradas. Aquilo pelo qual você lutou agora é de praxe. Ninguém mais nem agradece. O que para você parece que foi ontem aconteceu há décadas. Os nomes conhecidos que você cita ninguém nunca ouviu falar. Suas músicas preferidas não tocam mais no rádio. Aliás, que rádio? Suas roupas estão fora de moda – mas calma, que elas voltam. Em breve vão ser chamadas de vintage. Algumas coisas são cíclicas. Não você. Nem eu.

Termino meu monólogo e seu olhar só ri. Você levanta e me estende a mão – sem ela, eu não conseguiria. Damos os braços (algumas coisas não saem de moda) e costuramos a melodia daquela canção que ninguém mais sabe a letra. E nos pomos a passear. Rumo? É pros jovens. Nosso destino é qualquer lugar. 

Tudo no seu devido lugar

É como o último livro a preencher uma estante. De repente, olhamos para ela e a percebemos completa. Cada um dos exemplares enfileirados como se fossem palavras escolhidas a dedo para compor um poema. Tudo no seu devido lugar. O sentimento é gigante. É uma satisfação cachalote que nos enche de esperança. A possibilidade de ter cada uma daquelas páginas lidas – não por um, mas por todos nós. As traças vão aparecer novamente – não se engane. Mas eu (e você) vamos esmagar uma a uma, espanar o pó com gosto e admirar (hoje e sempre) aquela estante completinha. 

Monstro

Era um monstro. Desde que bati o olho, tive certeza. Tentei avisar, mas alguns pareciam não me escutar. Ou não queriam. Eu apontava para o canto escuro e dizia: é um monstro! De nada adiantava. Um parente aproximou-se da escuridão e não viu um monstro, viu um espelho. Um vizinho escutou o rosnado do bicho e disse que eram sábias palavras. Minha colega de trabalho disse que não percebia diferença entre o monstro e um ser humano. Havia algo errado. E eu não demorei a perceber que a criatura tinha um poder de hipnose e mimetismo. Eles olhavam para ela e transformavam-se em parte de uma grande besta. Cada vez maior, parecia impossível de contê-la. Mas, dia a dia, eu encontrava alguém que via o monstro. Enxergava com precisão cada detalhe. E fomos nos conectando, uns aos outros, crescendo em número – e em boa visão. Nos demos as mãos e, dessa união, foi surgindo uma corrente. Mas não uma qualquer. Uma corrente tão longa e tão maciça que foi possível – com coragem e resiliência – enlaçar o monstro e derrubá-lo no chão. Chorou, esperneou, mas foi vencido. A melhor maneira de domar um pesadelo é transformá-lo em sonho.

Espaço

Eu só preciso de um pouco de espaço. Em meio ao corre-corre, eu quero ser o momento em que você para e espera o semáforo. Em meio a tanta perda, eu quero ser uma pequena vitória. Em meio a tanta informação falsa, eu quero ser a notícia boa. Em meio a tanta ansiedade, eu quero ser a música que te acalma. Em meio a tanta indiferença, eu quero ser a boia que te salva. Em meio à doença que surgiu por trás da doença, eu quero ser aquele minuto de esperança em que você pensa “eu acho que vai dar”. Em meio a tanta coisa, eu quero ser algo mais.

De jeito nenhum

Me sinto uma máquina de escrever em um mundo de computadores. Sou uma VHS em uma casa que não tem vídeo-cassete. E não estou rebobinada. Tenho um quê de caixinha de CD rachada. Às vezes, acordo meio relógio-cuco. Sem ninguém ter me dado corda. Mas quando me olho no espelho – espelho quebrado que sou – vejo algo mais. Enxergo uma máquina que segue escrevendo. Uma fita que contém memórias não reveladas. Carrego um catálogo de músicas dentro de um coração lacerado. E mesmo quando acordo sem corda, tenho algo valioso: tempo. E esse, eu não perco de jeito nenhum.

Uma valsa

Aos meus pais, juntos há 51 anos.

Tudo começa no olhar. Ele a vê. Impressa na íris, a imagem se traduz em palavras. A boca fala, os lábios beijam, os dentes sorriem. A mente sabe. Ela o decifra. As mãos se tocam e os corpos se enlaçam. Um abraço ou uma história saindo do rascunho. Os pés andam juntos, ritmados, até a caminhada se converter em uma valsa. Da dança, uma mudança, duas, três. Os ouvidos escutam algo além da música: um choro. O cheirinho de bebê na casa. Um, dois, três. O nascimento do amor materno, paterno, eterno.

Enquanto tudo muda – ou se reconfigura – eles seguem dançando.

Um, dois, três. Um, dois, três. Um, dois, três…

Atropelamento

Meu corpo estatelado no chão. Minha mãe sempre disse que moto era uma roubada. Mas eu assisti Easy Rider, e não deu outra. O motorista do carro fala comigo, tenta me manter acordado. Um passante liga para a ambulância. E o resto do mundo segue. E é só nisso que eu penso. A moça louca para voltar para casa buzina. Eu não dou um pio, o mundo grita. O menino de skate para cinco segundos para matar a curiosidade. Eu, zoológico; o mundo, visitante. O moço do prédio à frente dança Beyoncé pelado próximo à janela. Eu no pause, o mundo no play. Dezenas de pessoas passam, me veem e não fazem nada. Eu, invisível, o mundo, previsível. A ambulância chega e as luzes giram e o mundo gira e a minha cabeça gira e as luzes giram e o mundo gira e a minha cabeça gira e as luzes giram e o mundo gira e a minha cabeça gira…