Monstro

Era um monstro. Desde que bati o olho, tive certeza. Tentei avisar, mas alguns pareciam não me escutar. Ou não queriam. Eu apontava para o canto escuro e dizia: é um monstro! De nada adiantava. Um parente aproximou-se da escuridão e não viu um monstro, viu um espelho. Um vizinho escutou o rosnado do bicho e disse que eram sábias palavras. Minha colega de trabalho disse que não percebia diferença entre o monstro e um ser humano. Havia algo errado. E eu não demorei a perceber que a criatura tinha um poder de hipnose e mimetismo. Eles olhavam para ela e transformavam-se em parte de uma grande besta. Cada vez maior, parecia impossível de contê-la. Mas, dia a dia, eu encontrava alguém que via o monstro. Enxergava com precisão cada detalhe. E fomos nos conectando, uns aos outros, crescendo em número – e em boa visão. Nos demos as mãos e, dessa união, foi surgindo uma corrente. Mas não uma qualquer. Uma corrente tão longa e tão maciça que foi possível – com coragem e resiliência – enlaçar o monstro e derrubá-lo no chão. Chorou, esperneou, mas foi vencido. A melhor maneira de domar um pesadelo é transformá-lo em sonho.

Hoje ela

Hoje ela acordou com determinação nos pés. Caminhou em linha reta ao objetivo. Sem curvas, sem paradas. Cada passo certeiro. O som de sua andança produzia música. Triunfante. Uma jornada dórica sem fade out. Não havia dúvida ou hesitação. Um trompete, talvez. O que ela via como medo, agora era enredo. O horizonte à vista, um violino. O que ela sentia como improvável, agora era tátil. A areia em seus dedos, um coro de vozes crescendo. O que ela ouvia como ofensa, agora é parte de sua dança. Está tudo presente e o horizonte vira seu habitat. O que ela chamava de esperança, agora ela alcança.

A involução do homem

Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, o homem encontrou-se em sua cama metamorfoseado num macaco. Não entendia o que acontecera, mas também seu cérebro não mais o ajudava na compreensão. Parecia ser uma coisa boa até. Levantou-se para seguir sua rotina, mas ela não estava mais lá. Não havia mais trabalho. Estava livre! Aleluia! Mas também não havia mais dinheiro. Nem pro aluguel, nem pra comida. Viu-se na rua, faminto. Encontrou outros na mesma condição e resolveu conversar com eles. Mas não sabia mais dialogar e logo o papo virou pugilato. Soco, tapa, pontapé e resolução nenhuma. Andando sozinho pela rua, o brilho de uma televisão em uma vitrine chamou sua atenção. Assistiu – muito surpreso – o discurso de um governante… homem. Seguido da benção de um outro – adivinhem – homem. Seu cérebro não processou aquela cena direito. Mas lhe parecia que algumas pessoas haviam mantido o luxo de ser humano. Ou de parecer um. Era difícil de compreender por que razão só alguns teriam sido escolhidos… Mas pensar não era pra ele, então resolveu seguir adiante pois havia muito a ser (re)feito. Quem sabe ele não conseguiria ser o inventor da roda um dia?

Uma valsa

Aos meus pais, juntos há 51 anos.

Tudo começa no olhar. Ele a vê. Impressa na íris, a imagem se traduz em palavras. A boca fala, os lábios beijam, os dentes sorriem. A mente sabe. Ela o decifra. As mãos se tocam e os corpos se enlaçam. Um abraço ou uma história saindo do rascunho. Os pés andam juntos, ritmados, até a caminhada se converter em uma valsa. Da dança, uma mudança, duas, três. Os ouvidos escutam algo além da música: um choro. O cheirinho de bebê na casa. Um, dois, três. O nascimento do amor materno, paterno, eterno.

Enquanto tudo muda – ou se reconfigura – eles seguem dançando.

Um, dois, três. Um, dois, três. Um, dois, três…

Tão fácil

Pegou a mão dele. Sentiu que era tão fácil. Estar ali, estar com ele, estar bem. Destino? Nah, nada tão premeditado. Era a magia do acaso mesmo, que costura um coração do Norte a um do Sul. Ultrapassa fronteiras imaginárias e une cordões reais. Amarra dois em um. Mas com a corda solta, com o riso solto, pensamento solto. Um nó mal feito com muito carinho. O braço dele ao redor do outro parecia um laço. Embrulhados para o presente. Enlaçados nos cobertores, sonhavam. Nós se desfazem. Nós, não. 

Surfista do Tempo

Em ondas de areia clara e escura, eu surfo. Não fujo do passado, mas passo raspando, passando a mão na areia sem me comprometer. É um afago no eu pretérito, não um colo. Minha prancha segue firme e inabalável. Até eu cair, é claro. Ah, sim, eu caio. Mas como o carinha do Pitfall, eu encontro uma nova vida, pulo a areia movediça e sigo. Porque futuro é isso: uma vida extra. Não é sequência do presente, até porque o presente já era. Futuro é horizonte. É pra lá que eu surfo. Sem enxergar bem o que tem naquela linha distante. Pode ser praia, ilha, pirata ou sereia. Quem sabe uma baleia? Só sei que não é o que ficou pra trás. Poderia ser. Não quero. Quero envelhecer rejuvenescendo. Quero me embriagar de lucidez. Montar num cavalo marinho e brincar de ser mais eu. Eu agora, não eu pretérito. Precisamos todos rejuvenescer. Surfando nas areias do tempo. Caindo. Vida extra. Rumo a uma inalcançável linha que – veja bem – fica logo ali.

A caravela de lixo

“Lá vem o caminhão de lixo!”, gritava a mãe de Davi.

Para os adultos daquela pequenina cidade do interior, era hora de levar os sacos pretos (cheios de tudo aquilo que eles haviam dispensado de suas vidas) para fora de casa. Era preciso correr para não perder a passagem do veículo. Imagina ter que levar de volta pro lar tudo aquilo que já havia sido descartado e considerado sem
serventia. Uma calamidade!

Mas nos olhos de Davi, aquela chegada era PURA AVENTURA. Ouvia de longe o caminhão se aproximando e sabia que tudo iria mudar. O som caótico de gritos incompreensíveis e um motor baderneiro que fazia a rua tremer… Ahh, música pros seus ouvidinhos!

Enquanto os adultos enxergavam um caminhão de lixo, os olhinhos curiosos da infância – ansiosos! – avistavam uma caravela com rodas se aproximando com intrépidos piratas. Um deles, o comandante, trazia uma mão no volante e a outra para fora da janela fazendo sinais indecifráveis para os outros aventureiros pendurados na traseira. Eles, é claro, entendiam tudo e berravam uns para os outros aparentemente em uma outra língua. Um idioma que ele, algum dia, dominaria. Sim, porque Davi sonhava em ser lixeiro. Queria navegar pelas ruas da cidade pendurado a bombordo, descendo sempre que necessário para capturar os sacos de lixo (ou seriam tesouros?) que os nobres cidadãos traziam desesperadamente para as mãos desses impetuosos corsários.

Quando o caminhão passava na frente de sua casa, o menino abanava para os parceiros de aventura. Eles sinalizavam de volta, pois sabiam – é claro! – que ele, um dia, também seria um deles. Assim que a caravela motorizada desaparecia em meio a um lindo e tóxico nevoeiro preto, a rua era preenchida por um silêncio com sabor de normalidade. Blergh!… Por alguns segundos, ele fitava o horizonte, sabendo que a aventura continuava além daquela misteriosa linha.

Mas, assim como as grandes embarcações, logo a mente de Davi mudava de curso. Sem seguir qualquer bússola, sua imaginação passava a vagar por outras ondas, levando o menino a desbravar novas terras, ilhas e outras maravilhas que só ele poderia explicar.


O texto de hoje foi inspirado em uma fotografia feita pela Brunna Stock, como parte de um desafio do coletivo cultural PáginaDois.

O mundo de Davi

Foto: Isabel Dall’Agnol

Davi não entendia bem o que estava acontecendo, mas também não era bobo.

O mundo havia parado. Ele sabia disso. Os seus pais quase não saíam mais de casa. Quando ousavam colocar o pé na rua, disfarçavam-se. Como se as pessoas não fossem reconhecer a sua mãe ou o seu pai atrás daquelas máscaras. Os adultos têm cada uma…

A TV, tantas vezes proibida no passado, agora era a sua maior companhia. Seus pais chegavam a insistir para ele ir para a frente do aparelho. Mas ela tinha se tornado chata. Resolveu fazer com o aparato o mesmo que haviam feito com o mundo: colocou no “pause”.

Na varanda, com os olhinhos curiosos da infância, ele capturou a presença de blocos de montar. Contemplando cada pecinha, decidiu reinventar o mundo. O telhado serviria agora de base, as janelas seriam colocadas de ponta-cabeça, as pontes virariam pistas de skate. Tudo ganhava uma nova função.

Foi tomado de súbito por uma imensa alegria. Abriu um daqueles sorrisos gostosos em que a graça a gente nem sabe onde está. “Eureca”, ele teria gritado se soubesse o que isso significa. Mas epifania é coisa de adulto, então Davi só seguiu brincando.

O mundo continuou o mesmo. Mas o seu. Não o de Davi.


Texto inspirado em uma foto de Isabel Dall’Agnol como parte do desafio de novembro de 2020 do PáginaDois.

Meu Carnaval é você

Meu Carnaval é você.png

ilustração: Cassiano Rodka

Meu Carnaval é você.
Sua presença chega forte na avenida e preenche cada ala como o som do repique. Seu sorriso é meu carro-chefe, me põe em cheque, me faz cantar. Eu sambo por você enquanto seu olho me contorna. Eu sou sua musa, um chute na trave, e ela já sabe. Deixo você sem graça, sou o sabor da sua cachaça. Você me bebe e eu entorno você, como já é de costume. Seu bafo de cana é meu perfume. Debaixo da máscara, eu vejo você e mais nada. No seu coração, sou eu a batucada.

É também você a minha Quarta-feira de Cinzas.
Os restos de purpurina no cabelo e o gosto amargo da catuaba às 10 da matina. Meu pijama suado e as serpentinas na sola do pé… Já sabe quem é? Foi bom e foi você. Mas agora você já era. Na hora do banho, lá vai você escorrendo pelas minhas pernas, descendo rápido pelo meio dos dedos, derramando-se em memórias, fazendo a maquiagem virar careta, se esvaindo no ralo como um pierrô na sarjeta.

Três andares

Três andares_P2

Instruções para ler o texto: leia todo em voz alta. Quando houver parênteses, leia sussurrando.

São três andares e eu não vou sair vivo daqui.

No terceiro, deste lado eu, do outro lado a sombra de um homem com uma besta à espreita. No meio, uma escadaria que leva até os outros andares. Uma samambaia pende do parapeito da sacada.

No segundo, deste lado eu, do outro lado a silhueta de uma mulher empunhando uma katana. No meio, uma fonte que jorra e molha grosseiramente quem desce.

No primeiro, só eu e mais ninguém. Um lado leva a outro. Nada ao redor.

Revisando.

No terceiro, deste lado eu, do outro lado a sombra de um homem com uma besta à espreita. No meio, uma escadaria que leva até os outros andares. Uma samambaia pende do parapeito da sacada.

No segundo, deste lado eu, do outro lado a silhueta de uma mulher empunhando uma katana. No meio, uma fonte que jorra e molha grosseiramente quem desce.

No primeiro, só eu e mais ninguém
(porque eu não vou fazer um só som até você vir me pegar.)