Mudanças

Foto: Chris Lawton

Nos últimos meses, vi minha vida mudar completamente. Troquei de bairro, comecei um novo trabalho e adotei dois gatos. Pode não parecer muito, mas bastaram essas três ações para que nada mais fosse igual no meu dia a dia. 

Mudar-se de endereço é criar uma nova rotina. Passamos a frequentar ambientes diferentes: comemos em outros restaurantes, adotamos um novo supermercado de estimação, andamos por ruas que não conhecíamos, respiramos um ar diferenciado, com novos cheiros, e nos acostumamos a escutar barulhos distintos. Os objetos da casa são rearranjados, outros são comprados, é essencialmente um novo lar. Isso nos faz criar novos hábitos, nos movimentamos pela casa de outra forma, reaprendemos a utilizar o nosso espaço e aproveitamos a nossa vida doméstica de novas maneiras. Especialmente em São Paulo. Aqui, um novo bairro é como uma nova cidade, com diferentes habitantes e costumes peculiares de cada região. 

Começar um novo emprego também é uma quebra de rotina. Os horários têm que ser adaptados: a hora do banho, do almoço, de acordar. Sem falar na vida durante o trabalho, com novos chefes e toda uma equipe de pessoas diferentes entrando no nosso cotidiano. Às vezes, damos sorte. No meu trabalho no MIS Experience, acabei fazendo novos amigos e aprendendo muito. Passo mais tempo lá do que em casa, portanto essa conexão é muito importante – são uma nova família. 

Adotar animais de estimação comprovadamente muda você. Sim, você – não só a sua rotina, mas o seu jeito de enxergar a vida. O companheirismo, as diabruras, a lealdade, a teimosia e a sinceridade dos felinos nos fazem pensar em como a vida pode ser mais simples. A alegria deles está em momentos que consideramos básicos, e isso nos reprograma a enxergar novamente a beleza desses pequenos prazeres. Quando saímos do trabalho, não voltamos apenas para a casa, retornamos para eles. 

Eu sempre adorei mudanças. Compreendi desde cedo que elas fazem parte do viver. Adaptar-se a elas é essencial, seja as que vêm porque queremos ou as que chegam sem convite. Eu acredito que o segredo da felicidade está em aprender a lidar com um trem que se descarrilha constantemente. Eu gosto de olhar ao redor e ver que tudo mudou. Porque, quando tudo em volta está diferente, você é outro também. Percebo isso não só quando me olho no espelho, mas quando me pego cantando uma nova canção, usando uma gíria que não era minha, apreciando algo que nunca havia reparado antes. Nós colhemos pedaços do comportamento e do pensamento das pessoas ao redor que admiramos e damos vida uma árvore de referências que constrói um novo eu. Estar vivo é reinventar-se. E semear a mudança nos outros também. 

Quando o fim não satisfaz

Foto por Sigmund

Você está na sala de cinema assistindo aquele filmaço. O roteiro é incrível, as atuações são brilhantes, figurino impecável, mas… que fim ruim

Você está terminando uma das melhores leituras do ano. Já se imaginou várias vezes recomendando o livro para os seus amigos, mas… O último capítulo é como um trem desgovernado que segue para lugar algum

E aquele novo álbum da sua cantora favorita que é hit atrás de hit? Uma seleção perfeita… até tocar aquela horrível faixa de encerramento. Por que ela colocou aquela música ali? Estragou o disco

Nós somos obcecados com finais perfeitos. Se o fim não satisfaz nossas expectativas, consideramos que perdemos tempo. Desvalorizamos todas as cenas boas do filme, queremos arrancar das páginas da memória os capítulos do livro, e fazemos careta sempre que o ótimo disco da cantora chega na última faixa. 

Carregamos isso para todos os cantos da nossa vida. Resolvemos que o ex-namorado nunca prestou só porque o amor chegou ao fim. Concluímos que o amigo que parou de nos procurar sempre foi mesmo um falso. Procuramos com tanto afinco um final feliz, que nos privamos de aproveitar cada capítulo da história tal qual ele é. Queremos espiar por cima do muro, buscando adivinhar se o fim vai fazer valer a pena. A verdade é que o fim é algo que não controlamos. E essa falta de controle nos corrói por dentro. 

Nos decepcionamos com o final de criações artísticas porque é algo que sentimos que temos um mínimo de controle. Temos uma ideia de como o filme vai terminar, do caminho que o livro vai tomar ou de como será a faixa final do disco. O fim do namoro, o término abrupto de um emprego, o despejo de uma morada, a morte de um ente querido, tudo isso vem de surpresa. O medo da morte vem do desespero em não termos um final feliz. 

Que importância tão imensa damos ao fim. Mesmo que tenha uma sequência, mesmo que a vida continue. Porque o final é invenção nossa. Ele nunca existiu. Porque o filme segue ressoando dentro da gente. O livro, quando lido novamente, traz novas interpretações – parece até que nunca tinha sido realmente lido! E aquela faixa final do álbum… até que não é tão má assim…

Quando o poema vira livro

Existe um sentimento que define a emoção de ver os seus escritos publicados em um livro pela primeira vez. Mas uma palavra para esse sentimento ainda escapa o dicionário. 

Se tivesse que escrever uma receita desse sentimento, eu colocaria um bocadinho de orgulho, um outro tanto de realização pessoal, um punhado de concretização de algo que procura uma forma há anos e parece finalmente transformar-se em um objeto tátil. É como se a poesia saísse do universo das ideias e tomasse forma material. Aquele conjunto de palavras que costuramos de um jeito muito pessoal agora pode ser manuseado, consumido pelos olhos, processado pelas mentes de diferentes pessoas. E é aí que entra outro ingrediente imprescindível: o outro.

Quando alguém pega nosso livro na mão é como se colhessem nossa poesia de uma árvore. Esperamos que ela seja mordida, mastigada e degustada com prazer. Somos chefs das palavras, empolgados com os efeitos que cada pedaço de poema pode trazer. Eles são agora parte do mundo, sementes na cabeça de quem os lê. Florescerão de acordo com a maneira como forem regados. Já não são mais nossos, são algo mais. 

Lancei meu primeiro livro, “Partituras”, há quase dez anos. Ver minha irmã e sócia do PáginaDois dando esse primeiro passo é um momento que se adiciona à nossa longa caminhada. São 18 anos traduzindo sentimentos em palavras. Criando conexões com um público cada vez maior, que nos carrega no celular e nos coloca na estante. Quando escrevemos, nos tornamos espelho de quem nos lê. Quando lidos, existimos.

Por que ler quadrinhos?

por-que-diabos-ler-quadrinhos-imagem

Não encontramos apenas super-heróis, nos deparamos com pessoas reais – às vezes, espelhos. Não são só histórias leves ou descartáveis, há tramas profundas e instigantes. Não é apenas para crianças, é para você também.

O universo das histórias em quadrinhos sempre foi fascinante para mim. Meu interesse pela leitura surgiu nas revistinhas da Turma da Mônica, passou para os gibis do Batman e atualmente perambula pelas mais variadas graphic novels. É comum a crença de que os comics se limitam a histórias infantis e banais, o que é um grande engano. Há um universo de quadrinhos adultos que têm o mesmo valor literário de um bom romance ou um grande filme.

pilulas-azuis-partituradesafinada
“Pílulas Azuis”, de Frederik Peeters, narra o romance real entre o quadrinista e sua esposa, que é portadora de HIV.

Eu acredito que a arte dos quadrinhos é a ponte que liga a literatura ao cinema. Na literatura, a participação do leitor é imprescindível. Há uma história apresentada, mas é ele quem cria a aparência dos personagens, os cenários, os sons, o clima de cada momento. Nossa criatividade é convidada a complementar o que estamos lendo, criando uma espécie de filme em nossas mentes. Por isso, é tão fácil nos decepcionarmos com interpretações cinematográficas de obras que lemos. Quando enxergamos a história materializada na visão de outra pessoa, ela certamente não bate 100% com o que nós havíamos visto em nossas cabeças. É importante mantermos essa consciência de que a adaptação do livro será sempre a versão visual de como outra pessoa enxergou aquela história.

O cinema talvez seja a forma de comunicação através da arte em que o material apresentado chega ao observador da maneira mais “mastigada”. Salvo algumas exceções, os filmes tendem a trazer ao público uma história definida, com imagens e sons escolhidos para cada cena, deixando pouco a ser complementado por quem os assiste. Nós mergulhamos em um mundo que foi criado por outra pessoa, o que certamente é uma delícia, mas não temos tanto espaço para usar nossa imaginação. Está mais para um papel de ouvinte/recipiente do que uma construção conjunta.

saga-family-reunions
Utilizando um universo fantástico, Brian K. Vaughan conta a história de um casal inter-racial que enfrenta dificuldades para criar sua filha em “Saga”.

No caso dos quadrinhos, temos um meio-termo em relação a esses dois mundos – o do cinema e o da literatura. As HQs nos apresentam uma história definida e com imagens prontas, mas temos uma grande liberdade em interpretar a parte gráfica. É um pouco como olhar uma fotografia. Apesar de ser uma imagem estática, nossa imaginação nos permite preencher os espaços daquela imagem com sons, cheiros e sensações. É como se nós fôssemos os atores, editores de som e, talvez até, codiretores daquela história. A própria velocidade com que se degusta o enredo está em nossas mãos, nos dando o direito de observar com calma cada desenho e ler cada frase com a atenção que julgarmos necessária.

Se você nunca se deu a chance de experimentar a nona arte, convido você a acompanhar o Sorvete de Gibi, canal de quadrinhos que criei junto com o Pedro Cunha. Lá, nós falamos sobre grandes obras, lançamentos, damos dicas de HQs e quadrinistas, e cobrimos eventos do universo geek. Vem descobrir os sabores de quadrinhos que você gosta!

thief-of-thieves-fuck
“Thief of Thieves”, de Robert Kirkman, acompanha a trajetória de um ladrão de arte que procura largar o crime para recuperar sua vida normal.

O prazer da tristeza

Foto: Kilarov Zaneit

“Eu amei o filme! Chorei horrores!”, disse você depois de assistir àquele filme que mexeu muito com as suas emoções. “Essa música me deixa muito triste. É uma das minhas preferidas!”, revelou também você quando tocou aquela canção melancólica que está sempre nas suas playlists. 

Não é curioso que a tristeza, através da arte, pode nos dar prazer? Nós nunca celebramos um momento de choro no nosso dia a dia. Raramente damos destaque nas redes sociais a situações tristes que passamos. Ninguém quer viver a tristeza na realidade. Mas buscamos senti-la na arte. Às vezes, o intuito é sublinhar algo que estamos sentindo. Já em outras, é apenas um passeio pela melancolia, com hora para acabar. Talvez porque, na arte, tenhamos certo controle sobre a tristeza. Sabemos quando a faixa acaba. Ou o tempo médio do filme. Mas, na vida real, não temos controle sobre o fim da tristeza. Tampouco seu início. 

Fazemos isso não só com a tristeza, mas com outras emoções. Quando assistimos a um filme de terror, queremos provocar medo em nós mesmos. Mas, mais uma vez, com hora para iniciar, e absoluto controle sobre o seu fim. Quer parar de ver? Clic. O poder de controlar nossas emoções nos fascina. Justamente porque não conseguimos fazer isso no mundo real. Mas por que instigar a tristeza ou o medo? 

Porque as emoções nos fazem sentir vivos. 

Aquela sensação de aperto no peito quando choramos nos faz humanos. O coração batendo forte de medo nos recorda que estamos vivos. Sentir qualquer emoção é melhor do que não sentir nada. Provocamos as emoções porque queremos despertar a vida. Queremos que o sangue corra, que o coração pulse, que a pele se arrepie, que os dedos se contorçam, que os olhos despejem a tristeza, e que a vida – sem dó ou moderação – nos preencha por inteiro. 

O eu passado

Foto: Jeremy Yap 

Há uns meses me peguei ponderando sobre ir a um show de uma banda que eu costumava gostar. Senti que tinha que fazer isso – pelo eu passado. Logo me pus a me questionar: quem diabos é esse cara? 

O eu passado nem me olha mais no espelho. Ele deve estar lá no fundo, junto com tantos outros eus. Então quem ele pensa que é para influenciar nas minhas escolhas? 

O eu passado tem umas manias e umas ideias que eu não aprovo mais. Ele surge de vez em quando, puxado por uma música ou uma foto ou uma memória daquelas que aparecem do nada. Mas ele some macio, como uma sombra na escuridão. 

O eu passado tinha os paranauês dele, o que eu respeito, mas não são os meus. Não mais. Será que tem sentido ficar alimentando ele em vez de dar atenção total ao eu presente?

Não me entendam mal, eu gosto do eu passado. Ele é responsável por muito do que o eu presente é. Ele teve que errar muito para eu fazer os meus acertos, então tenho muito a lhe agradecer. Mas agora quem tem que errar sou eu, para engrandecer o eu futuro. 

O eu futuro gera muita ansiedade ao eu presente. Não tanto ao eu passado, até porque ele achava que o eu futuro era eu. Por isso, prefiro não focar nele também – mesmo que às vezes ele se insinue no espelho. 

Meu compromisso é com o eu presente. É ele quem me faz feliz. O que ele sente me emociona. O que ele escuta me faz sorrir. O que ele lê me alimenta. O que ele me propõe é o que eu preciso fazer. 

Não me interessa o que eu passei ou passarei. Me interessa o passo.

A satisfação

Foto: Elyas Pasban

Você acorda e olha os e-mails. Posta a primeira foto na rede social para dar “bom dia” e deixar claro que está tudo bem com a sua vida. Dá uma vasculhada em jobs na outra rede e já deixa um post mostrando o que você fez de eficaz na sua vida profissional naquela semana. Nota que já tem várias mensagens no celular e vai respondendo uma por uma. E o dia segue, com atualizações constantes sobre onde você está, com quem e o que você acha sobre o que está acontecendo naquele exato momento. 

A quem você está dando satisfação? 

Desde o surgimento da internet, nós deixamos de ficar sós. A possibilidade de conexão com outro ser humano está sempre a uma tecla de distância. A solidão saiu de moda. O silêncio, ninguém nem lembra o que era. O celular está constantemente à mão, o que significa que você está permanentemente à disposição dos outros. Se você coloca o telefone no bolso, você inclui o seu chefe, a sua mãe, os seus amigos e toda a galera do telemarketing na calça. É muita gente para o pobre jeans surrado! 

Não poderia ter um resultado diferente: uma era de ansiedade, com pessoas continuamente  preocupadas em deixar tudo no lugar o tempo inteiro. É como um barulho ininterrupto, que corta o silêncio e lembra você que existe algo que ainda não foi feito para você ficar plenamente satisfeito. 

Mas você está tendo alguma satisfação?

Até na hora de relaxar, há cobranças: você já viu a série do momento? Não? Já tem sete temporadas! O novo filme da Fulana Jones? O mais recente livro do Beltrano de Castro? O último álbum de Cicrano Star? É impossível acompanhar o ritmo de um mundo conectado, pois tem sempre alguém fazendo algo novo a cada minuto. E vamos ser sinceros? A gente não precisa de 90% do que está sendo produzido. E não estou falando em qualidade – tem sempre muita coisa boa sendo criada –, estou falando daquilo que nos toca de verdade. Nem tudo que é bom para os seus amigos vai fazer sentido para você. 

Em janeiro, eu fiz apenas uma resolução de Ano Novo: me dar o direito de um tempo para fazer nada. NADA! O que este “nada” inesperadamente gerou foram momentos em que eu consigo silenciar a mente e curtir coisas que eu realmente quero fazer naquele instante. Sem me preocupar em ser produtivo ou útil. Não são momentos instagramáveis, são oportunidades de estar comigo, plenamente sozinho, sem ter que alcançar objetivo algum. Me sinto recuperando algo importante na minha vida, um controle do barulho externo. 

Havia um tempo em que, quando a gente chegava em casa e fechava a porta, o mundo ficava lá fora. Era portanto, um espaço só nosso. Era preciso ser convidado para entrar no lar alheio. Atualmente, há várias portas abertas. Escancaradas. Mas a gente sabe muito bem como fechá-las. Ou melhor, desligá-las. 

Ah, que satisfação!… 

A reflexão (ou Os ídolos também morrem)

Foto: Greyson Joralemon

Nossa relação com música começa desde cedo. No início, o que escutamos é essencialmente o que nossos pais gostam de ouvir. Esse primeiro contato se torna a fundação onde passamos a construir o nosso gosto pessoal, mas ainda não nos define completamente. Para mim, foi rock, jazz e MPB. A vitrola dos meus pais tocava Jerry Lee Lewis, Ella Fitzgerald e João Gilberto. Estavam lá o tempo todo, costurando-se aos meus ouvidos e tornando-se parte de mim. 

Mas é durante a adolescência que nosso gosto musical vira algo mais. Não é mais apenas música, é um espelho. Nossos ídolos não são somente vocalistas incríveis ou instrumentistas invejáveis, são o que almejamos ser. Um reflexo de ideias que já habitam em nós, mas não encontraram ainda voz. Entrevistas tornam-se tão importantes quanto as letras das canções. Queremos desvendar os seus mistérios, saber os segredinhos que tornam esses seres tão especiais e entender como eles têm a coragem de ser exatamente como são. Emulamos suas palavras e seus trejeitos – inconscientemente ou não –, e suas opiniões nos ajudam a questionar o mundo e moldar quem realmente queremos ser. Ou quem, no fundo no fundo, já somos. 

Para mim, foi ver o Mike Patton pegando sempre o caminho inverso ao esperado. Foram os Mutantes desafiando os padrões musicais sem nunca se levar tão a sério. Foi a Nina Simone deixando claro, em meio a uma plateia branca, que estava ali para cantar o que, no fundo, não queriam ouvir. Foi o Nirvana desbancando a pompa e o machismo do rock para levantar o volume da voz dos incompreendidos. Foi o “Julinho da Adelaide” driblando a censura e cantando verdades contundentes fantasiadas de canções de amor. E é a Lizzo pregando com mil palavrões que se amar é possível – e é uma delícia! 

Tudo isso é música para os meus ouvidos. 

Mas o reflexo tem fim. Esses fortes seres, cheios de grandes ideias, que nos revelam como um filme e nos botam para cima mesmo nos piores momentos… Eles morrem. Às vezes, de maneira apenas simbólica: perdemos a conexão com o que eles têm a dizer ou eles nos revelam personalidades escondidas atrás de uma cortina – malditos Mágicos de Oz! – e nos decepcionam. Outras vezes, isso acontece de forma impiedosa e concreta: eles morrem. 

Lembro da sensação estranha quando David Bowie partiu. Parecia que algo inimaginável havia acontecido, como se não havíamos percebido que ele era um mortal. Era fácil não perceber. Alguém tão gigante, tão diferente da maioria da humanidade… Era inaceitável. Incompreensível. Antes dele, senti esse desconforto com a partida de Renato Russo. O cara que traduzia o Brasil em versos, que fazia os jovens pensar sobre política e questionar seu papel no mundo, ele simplesmente deixou de existir. Deixou um vazio, um silêncio. Parecia estranho que o mundo ainda girava. Mais recentemente, foi Rita Lee. Para mim, ainda é estranho estar vivendo em um planeta onde ela não mais habita. Sinto falta da audácia, da sagacidade, dos tweets. Sim, a música continua viva. Mas não é só a música, é o reflexo. Me sinto olhando um espelho sem reflexo. 

É tão estranho um mundo sem Lou Reed. É tão triste um Brasil sem Gal Costa. Mas, da falta do reflexo, me veio uma longa reflexão. E sabe o que eu descobri? A verdade é que o reflexo somos nós. As ideias, as canções, a atitude, nada disso morre porque estão espelhadas em nós. Nós somos a continuidade dos nossos ídolos. A gente fica encarregado de passar tudo isso adiante para as novas gerações. Porque, não, não é só música. São cacos de um grande espelho que reflete quem somos nós. E a gente brilha, e o mundo gira, como uma grande mirrorball

O amor é uma luta

Quando criança, aprendi que o amor estava nas pessoas e era passado de uma para outra através do beijo. Era mantido seguro no aperto das mãos entrelaçadas e concretizado em uma troca de alianças. Quando duas pessoas se amavam, o fato era celebrado por todos, até virava festa. A união era eterna e levava a um só lugar: o tal do final feliz. 

Aí eu cresci. 

O amor que eu sentia não era celebrado. Era um erro. Algo a ser escondido em um diário dentro de uma caixa embaixo da cama. Gostar de alguém era um perigo. Os olhares eram espiadelas. O contato se dava no mundo das ideias. O amor era solitário. Não era sentido, mas almejado. Vinha em forma de escrita, de música, de lágrimas. Mas não vinha nunca. Eu sentia que era o único a amar assim. Não entendia quem eu via no espelho. 

Aí eu me encontrei. 

E junto comigo, toda uma comunidade. O amor voltou a ter sentido. Passou a ser sentido. Ficou maior. Tão enorme quanto uma massa de pessoas descendo a avenida Paulista. As mãos dadas passaram a ser tão importantes quanto os punhos cerrados jogados ao alto. A escrita não é mais traçada em letras miúdas, vem em letras garrafais. A música não é mais só minha, é um canto em uníssono – envolvente, estremecedor, efervescente. Em ebulição. Uma união que não é presa por uma aliança, mas por um elo comunitário. O amor não é nada daquilo que eu aprendi. O amor é uma luta. Uma batalha diária pelo seu próprio sentido. É olhar-se no espelho e sorrir. É olhar para o outro e se enxergar. É uma longa caminhada rumo a um estado de pertencimento, de harmonia e de recognição. 

E eu acho que cheguei. 

Em POA

Passar o finde em Porto Alegre
é sempre dar uma voltinha no passado.

As ruas, os bares, os sons,
é tudo muito familiar.

Distante, mas presente.

As noites são pequenas,
mas imensas.

Como sombras que se agigantam
e distorcem as proporções.

É uma comunicação
com um eu passado.

Um calçar de sapatos
de números menores.

Um reacender
de luzes interiores.

E uma temporada extra
de uma nova/velha vida.