por Cassiano Rodka
“The world is always ending,
for someone.”
Neil Gaiman
Eu no sofá, a TV na mesinha.
Abri o envelope e olhei as lâminas. Ossos e sombras em tons de cinza azulado. E a manchinha mais escura. “Está vendo ali?”, disse a médica. “Não”, respondi. “Tira qualquer mancha”, disse a dona de casa felicíssima. “Qualquer mesmo?”, me pergunto, quase me convencendo a comprar o milagroso sabão em pó. E olho a mancha. E a lâmina me olha. Sim, aquela caveira me fita e enxerga a si mesma. Um tenebroso espelho de fumaça. “É muito melhor que manteiga”, tenta me convencer a mãe de uma família perfeita cuja felicidade depende apenas de uma margarina. Largo meus ossos e vou até a cozinha. Não tenho margarina. Volto para sala e olho novamente a caveira em cima do sofá. Sorrindo com sua manchinha na cabeça. “É maligno”, disse ela. E olho para a família sorridente com sua margarina. E consigo ver suas caveiras por baixo de suas peles perfeitas e roupas impecavelmente limpas. Por dentro, todos já são o resultado de suas próprias mortes. Sem as vestimentas, sem a pele, sem a carne e sem qualquer órgão que nos faz vivos, somos um simples caroço. Vai-se a fruta e ele permanece. Rijo e inútil. “Sua vida nunca mais será a mesma”, diz a outra mãe de família, caveira sorridente, dentes branquíssimos. Ela não tem manchas na sua cozinha – diferente das que usaram os produtos da concorrência -, mas tem uma em seu seio esquerdo que tanto o seu produto, quanto o da concorrência não podem apagar. Mas ela sorri. “Seu sorriso mais branco”, “A vida em suas mãos”, “Preço baixo e qualidade”, as caveiras seguem desfilando seu contentamento. Em seus mundos, não há a morte, mas a margarina perfeita. Não há problema sem solução. E não há manchas. Outra vez, a margarina. Volto à cozinha, abro a geladeira. Não, não há. Há um pêssego mordido. Sem casca, a polpa meio seca, o miolo marrom me espiando. Pego a fruta e sinto a dor. Caio de joelhos, a fruta rola para a sala. “Tração nas quatro rodas”. Me arrasto em direção ao telefone. “Tudo ao seu alcance”. Preciso de ajuda. “Tudo o que você precisa, encontra aqui”. Preciso discar um número. “As melhores tarifas”. Mas, mais do que tudo, preciso pegar o controle remoto.
Clic.