Atropelamento

Meu corpo estatelado no chão. Minha mãe sempre disse que moto era uma roubada. Mas eu assisti Easy Rider, e não deu outra. O motorista do carro fala comigo, tenta me manter acordado. Um passante liga para a ambulância. E o resto do mundo segue. E é só nisso que eu penso. A moça louca para voltar para casa buzina. Eu não dou um pio, o mundo grita. O menino de skate para cinco segundos para matar a curiosidade. Eu, zoológico; o mundo, visitante. O moço do prédio à frente dança Beyoncé pelado próximo à janela. Eu no pause, o mundo no play. Dezenas de pessoas passam, me veem e não fazem nada. Eu, invisível, o mundo, previsível. A ambulância chega e as luzes giram e o mundo gira e a minha cabeça gira e as luzes giram e o mundo gira e a minha cabeça gira e as luzes giram e o mundo gira e a minha cabeça gira…

Tão fácil

Pegou a mão dele. Sentiu que era tão fácil. Estar ali, estar com ele, estar bem. Destino? Nah, nada tão premeditado. Era a magia do acaso mesmo, que costura um coração do Norte a um do Sul. Ultrapassa fronteiras imaginárias e une cordões reais. Amarra dois em um. Mas com a corda solta, com o riso solto, pensamento solto. Um nó mal feito com muito carinho. O braço dele ao redor do outro parecia um laço. Embrulhados para o presente. Enlaçados nos cobertores, sonhavam. Nós se desfazem. Nós, não. 

Desacordo

Não é o meu tipo. Não cabe na minha vida. Não tem meu número, e eu não ando descalço. Não tem na cor que eu queria. Até tem, mas acabou. Não tá no mesmo nível. Não tá no mesmo tom, e não sou eu o desafinado. Não foi o que a gente combinou. Não dá pro meu bolso. Não tá pro teu bico. Não é o meu dia. Não é da tua conta. Não é do meu feitio, mas…

Quem sabe?

ACORDA

Cabô a brincadeira. Cê bancou a cabra-cega, mas agora sossega que o perigo já passou. Passou de mal a pior. Cê quis brincar com fogo e queimou a própria casa. Que descaso, meu amigo. Só olha pro umbigo e acha que é nação. Perdeu o sentido num discurso sem noção. Intenção de bosta que só olha e não encosta, que, do espelho, nada gosta e devolve num borrão. Sua imagem é construída, de borracha, sem tesão. Dá uma olhada à sua volta, não esconda sua revolta que é consigo mesmo, irmão. Repensa essa face, rejeita esse vazio e aceita sua vontade. Sê teu. Sê nosso. Abraça seu cansaço e vem pro mutirão.

Descalça

Ando descalça. Sinto nas solas dos pés o toque da terra. Como um apoio materno, mantendo-me ereta. Sem me apontar caminho ou direção. A andança é minha. Se tropeço, apoio duro do chão. Quando levanto, sinto a terra na mão. Um beijo molhado de barro que me alenta a reatar o movimento. Cada passo, na lama ou no cimento, entrelaça um novo caminho, que você chama de destino. Eu chamo de opção.

Adaptação

Não me adapto. Não me adapto. Calço o seu sapato. Mas não me adapto. Traço o seu caminho, sigo o seu compasso. Mas não me adapto. Não me adapto. Tomo o seu café, tomo o seu metrô, tomo na cara de cansaço. Não me adapto. Compro o seu sucesso, abraço o meu fracasso. Faço o que cê diz, não faço o que eu faço. Não me adapto. Não me adapto. Tomo o seu remédio, tomo o seu amor, tomo o seu lugar e não me adapto. Não sou daqui, não sou você e não assino esse contrato. Não me adapto. Não me adapto. Eu não me adapto.


O texto e a ilustração de hoje foram inspirados no curta Anima, de Paul Thomas Anderson, como resultado de um desafio feito pelo Pedro Cunha.

Seja o outono

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ilustração: Cassiano Rodka

Como folhas secas, vocês serão esmagados. Um a um, lentamente, por pés cansados e cheios de chinfra. Cansa. A caminhada cansa. O sapato desgasta, mas não a esperança. Senhora teimosa ela, cotovelos sempre na janela. Ela aguarda para ver a banda passar. Alguma banda há de passar. Vai cair. Ele vai cair. Como folha seca. O som do sapato sobre a folha seca. Que som, meus amigos, que som! 

Que ventania foi essa? Parecia que ia levar tudo. Levou foi nada! O vento parou de soprar. Piano, pianinho. Deu lugar a uma chuva mansa que, em São Paulo, passa em 15 minutos e olha ali o sol. O sol trouxe você. Ou você era o próprio sol. O verão se instalou no meu relógio, iluminou cada segundo. E olha nós descendo a rua na grande parada. A banda tocando e a gente pisando nas folhas secas. O som das folhas se esfarelando, que música! Deixem os sapatos cantarem, meus amigos! 

Mas não esqueçam que as estações mudam. Na dança da mudança, não emudeçam. Sigam cantando. O tempo passa, como a banda. O calor dá lugar ao frio, as folhas voltam a crescer e o copo, mais uma vez, vazio. A parada não para. O coro aumenta. A bandeira agita. O outono retorna. Faz a folha cair novamente. Seja o outono. De novo e de novo. 

Deixa o Ano Novo ser um novo ano. Deixa mover, deixa seguir, deixa mudar. Deixa o sapato cantar. 

Meu Carnaval é você

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ilustração: Cassiano Rodka

Meu Carnaval é você.
Sua presença chega forte na avenida e preenche cada ala como o som do repique. Seu sorriso é meu carro-chefe, me põe em cheque, me faz cantar. Eu sambo por você enquanto seu olho me contorna. Eu sou sua musa, um chute na trave, e ela já sabe. Deixo você sem graça, sou o sabor da sua cachaça. Você me bebe e eu entorno você, como já é de costume. Seu bafo de cana é meu perfume. Debaixo da máscara, eu vejo você e mais nada. No seu coração, sou eu a batucada.

É também você a minha Quarta-feira de Cinzas.
Os restos de purpurina no cabelo e o gosto amargo da catuaba às 10 da matina. Meu pijama suado e as serpentinas na sola do pé… Já sabe quem é? Foi bom e foi você. Mas agora você já era. Na hora do banho, lá vai você escorrendo pelas minhas pernas, descendo rápido pelo meio dos dedos, derramando-se em memórias, fazendo a maquiagem virar careta, se esvaindo no ralo como um pierrô na sarjeta.

Instruções para um coração confuso

Instruções para um coração confuso

ilustração: Cassiano Rodka

Rasga esse medo e deixa o coração bater.

Escuta a melodia do teu desejo e dança. Sente o bumbo do teu peito e cai no ritmo desse pulso. Impulsivo ou verdadeiro? Verde até ficar maduro. Me dá o controle, perde o teu por completo. Encaixa tua vontade na minha, vamos do quarto à cozinha. Te despe da incerteza, baixa essa calça, derruba as coisas da mesa.

Não perca tempo, perca-se nele.

Eu tô aqui e tu também. Só vem. Olha no olho, sente essa chama. Sem culpa, sem tralha, derruba essa muralha. Uma parede de desculpas não te mantém seguro, mas preso. Te liberta desse peso. Mente aberta, coração solto. Uma tarde, um vinho, não aguarde um carinho. Toma as rédeas dessa febre. Arde.

Sente a brisa e voa longe,
assume a forma de gaivota.

A vida passa como o vento, sem tempo pra arrependimento. Não perde a tua passagem. Embarca no trem e curte essa viagem. Vem comigo, chega junto. Se nosso destino é o mesmo, senta aí do meu lado e vamos. Dá a mão, pende a cabeça no meu ombro, sente o balançar do vagão. Deixa ser como será. Ou não saberás como seria.

Se a morte há de chegar um dia,
devolve à tua vida a poesia.

Na padaria

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Na padaria, o cheiro do pão novinho faz o mundo parar de girar por uns instantes. No vidro do balcão, o reflexo de um sorriso encontra a bomba de ganache. O ruído da máquina moendo o café é música para quem quer que passe. Na gritaria entre os atendentes, uma chuva de deleites. Se não tem mais mesa vazia, no balcão há sempre espaço.

Na padaria, o amargo da vida se perde por entre os doces. O avô conversa com os netos inquietos, cuca cheia de açúcar. A moça flerta com o telefone, luz azul brilhando em seu rosto. A atendente não anota os pedidos, os carrega na mente. Os colegas de trabalho reclamam – é claro – do chefe. O escritor, como bem lhe cabe, observa.

Na padaria, o relógio deixa de funcionar por uns minutos. Ali, o tempo não se perde, se encontra. Mesmo que não dure (como nada dura), cada segundo é confeito. E amassa o papel do doce, sorve o último gole da taça e a moça recolhe o prato.