
Às vezes a gente acorda num mundo diferente.
Depois olha pela janela e percebe
que o que tem de novo
é a gente.
Às vezes a gente acorda num mundo diferente.
Depois olha pela janela e percebe
que o que tem de novo
é a gente.
Era um monstro. Desde que bati o olho, tive certeza. Tentei avisar, mas alguns pareciam não me escutar. Ou não queriam. Eu apontava para o canto escuro e dizia: é um monstro! De nada adiantava. Um parente aproximou-se da escuridão e não viu um monstro, viu um espelho. Um vizinho escutou o rosnado do bicho e disse que eram sábias palavras. Minha colega de trabalho disse que não percebia diferença entre o monstro e um ser humano. Havia algo errado. E eu não demorei a perceber que a criatura tinha um poder de hipnose e mimetismo. Eles olhavam para ela e transformavam-se em parte de uma grande besta. Cada vez maior, parecia impossível de contê-la. Mas, dia a dia, eu encontrava alguém que via o monstro. Enxergava com precisão cada detalhe. E fomos nos conectando, uns aos outros, crescendo em número – e em boa visão. Nos demos as mãos e, dessa união, foi surgindo uma corrente. Mas não uma qualquer. Uma corrente tão longa e tão maciça que foi possível – com coragem e resiliência – enlaçar o monstro e derrubá-lo no chão. Chorou, esperneou, mas foi vencido. A melhor maneira de domar um pesadelo é transformá-lo em sonho.
Hoje ela acordou com determinação nos pés. Caminhou em linha reta ao objetivo. Sem curvas, sem paradas. Cada passo certeiro. O som de sua andança produzia música. Triunfante. Uma jornada dórica sem fade out. Não havia dúvida ou hesitação. Um trompete, talvez. O que ela via como medo, agora era enredo. O horizonte à vista, um violino. O que ela sentia como improvável, agora era tátil. A areia em seus dedos, um coro de vozes crescendo. O que ela ouvia como ofensa, agora é parte de sua dança. Está tudo presente e o horizonte vira seu habitat. O que ela chamava de esperança, agora ela alcança.
Eu só preciso de um pouco de espaço. Em meio ao corre-corre, eu quero ser o momento em que você para e espera o semáforo. Em meio a tanta perda, eu quero ser uma pequena vitória. Em meio a tanta informação falsa, eu quero ser a notícia boa. Em meio a tanta ansiedade, eu quero ser a música que te acalma. Em meio a tanta indiferença, eu quero ser a boia que te salva. Em meio à doença que surgiu por trás da doença, eu quero ser aquele minuto de esperança em que você pensa “eu acho que vai dar”. Em meio a tanta coisa, eu quero ser algo mais.
Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, o homem encontrou-se em sua cama metamorfoseado num macaco. Não entendia o que acontecera, mas também seu cérebro não mais o ajudava na compreensão. Parecia ser uma coisa boa até. Levantou-se para seguir sua rotina, mas ela não estava mais lá. Não havia mais trabalho. Estava livre! Aleluia! Mas também não havia mais dinheiro. Nem pro aluguel, nem pra comida. Viu-se na rua, faminto. Encontrou outros na mesma condição e resolveu conversar com eles. Mas não sabia mais dialogar e logo o papo virou pugilato. Soco, tapa, pontapé e resolução nenhuma. Andando sozinho pela rua, o brilho de uma televisão em uma vitrine chamou sua atenção. Assistiu – muito surpreso – o discurso de um governante… homem. Seguido da benção de um outro – adivinhem – homem. Seu cérebro não processou aquela cena direito. Mas lhe parecia que algumas pessoas haviam mantido o luxo de ser humano. Ou de parecer um. Era difícil de compreender por que razão só alguns teriam sido escolhidos… Mas pensar não era pra ele, então resolveu seguir adiante pois havia muito a ser (re)feito. Quem sabe ele não conseguiria ser o inventor da roda um dia?
Ele era um cara inteligente e sempre fazia questão de avisar isso a todos de antemão. Sabia tudo sobre tudo, inclusive coisas que nunca tinha ouvido falar. Se a coisa existia, ele sabia. Suas decisões eram baseadas nesse profundo conhecimento e o levavam sempre ao oposto da razão. Quando estava doente, não tomava remédio. Desafiava a doença a se retirar sozinha. Sempre que pensava no futuro, olhava diretamente pro passado. Era tão reconfortante saber exatamente o que aconteceria. Ele buscava a paz, então iniciou uma guerra. Quem perdeu, é claro, foi ele. Pois sempre que atirava, era na direção oposta ao inimigo.
Me sinto uma máquina de escrever em um mundo de computadores. Sou uma VHS em uma casa que não tem vídeo-cassete. E não estou rebobinada. Tenho um quê de caixinha de CD rachada. Às vezes, acordo meio relógio-cuco. Sem ninguém ter me dado corda. Mas quando me olho no espelho – espelho quebrado que sou – vejo algo mais. Enxergo uma máquina que segue escrevendo. Uma fita que contém memórias não reveladas. Carrego um catálogo de músicas dentro de um coração lacerado. E mesmo quando acordo sem corda, tenho algo valioso: tempo. E esse, eu não perco de jeito nenhum.
Às vezes tudo que eu quero
é absolutamente
nada.
Aos meus pais, juntos há 51 anos.
Tudo começa no olhar. Ele a vê. Impressa na íris, a imagem se traduz em palavras. A boca fala, os lábios beijam, os dentes sorriem. A mente sabe. Ela o decifra. As mãos se tocam e os corpos se enlaçam. Um abraço ou uma história saindo do rascunho. Os pés andam juntos, ritmados, até a caminhada se converter em uma valsa. Da dança, uma mudança, duas, três. Os ouvidos escutam algo além da música: um choro. O cheirinho de bebê na casa. Um, dois, três. O nascimento do amor materno, paterno, eterno.
Enquanto tudo muda – ou se reconfigura – eles seguem dançando.
Um, dois, três. Um, dois, três. Um, dois, três…
Tem gente demais na vizinhança.
Olhos na minha roupa,
perguntas indiscretas,
sorrisos amarelos,
bom dias insinceros,
comentários ardilosos,
silêncios reprogramáveis.
Tem gente demais na vizinhança.