por Cassiano Rodka
À Camila e à Laura (porque promessa feita em almoço é coisa séria)
Parado em frente ao espelho, ele observava todos os defeitos que só uma imagem invertida pode nos fazer perceber.
Deu o nó da gravata em estilo francês com todo o cuidado e a atenção que esse nó exige. Arrumou a posição dos óculos em perfeita simetria com o rosto. Deu uma última conferida no seu visual, garantindo que estivesse tudo onde deveria estar. Deu uma rápida concordada com a cabeça, como se sua imagem no espelho lhe desse permissão para sair às ruas. Era seu primeiro dia à procura de trabalho depois de uma semana de autopiedade em casa. Passou exatos sete dias inconformado com a sua demissão. Repassou na cabeça inúmeras vezes a conversa com o chefe. Em algumas delas, ele recriava o final. Via-se levantando da cadeira e cobrindo o chefe de socos e pontapés sob os aplausos de todos que trabalhavam na empresa. Em outras, apontava-lhe o dedo dizendo todas aquelas verdades que todos nós sabemos, mas nunca falamos aos nossos chefes. (Vocês sabem bem do que estou falando, somos todos cúmplices) Lembrava com ódio da indiferença no rosto enrugado do velho. “Corte de gastos”. Ele era um gasto. Sempre achou que fosse um funcionário. Mas o que mais o preocupava era que teria de entrar em contato com várias pessoas de novo, conversar, convencer, fingir e vender-se, e ele não era bom nisso. E ele não aceitaria nada menos que o velho emprego, ou seja, ele teria que trabalhar novamente em casa. Era a única maneira que havia de ele ter controle sobre o ambiente de trabalho, e isso é algo que ele não abriria mão.
Na sala impecavelmente limpa, conseguiu achar defeito na posição dos quadros. Não estavam alinhados. Culpou mentalmente a faxineira, ele jamais teria permitido que isso acontecesse, mas a faxineira… Ela sempre abria a porta ao caos. Ele sempre a fitava com olhos reprovadores, de quem olha uma estante de sebo com grandes clássicos deteriorados. A grande verdade é que morava naqueles olhinhos uma vontade gigantesca de corrigir a faxineira. De remontá-la como um Lego de carne e osso, de torná-la uma pessoa melhor, como ele tinha se tornado desde que havia afastado o caos de seu mundo. Ele considerava a sua infância uma fase apocalíptica (não seriam todas as infâncias merecidamente assim?) e, aos seus olhos, ter se tornado um adulto o teria feito uma pessoa em perfeito equilíbrio. E ninguém o lembrava isso mais do que a faxineira. Aquela franzina senhorinha que mal conseguia manter os olhos em contato com o seu chefe, pois ele a fitava de modo tão estranho, que a fazia se sentir pequenininha. (Ao bem da verdade, ele sentia-se superior perto de qualquer ser humano à sua volta. Mas a história segue independente de minhas deliberações) Alinhou com perfeição os quadros. Girou a chave e saiu da casa. Saiu com aquela velocidade de quem hesita – uma falsa rapidez, lentidão enrustida. Calmamente fechou a porta sem produzir ruídos. A casa, em silêncio, estranhou a sua ausência.
Quando a chave voltou a girar na fechadura, não parecia mais hesitante, nem importava-se em fazer barulho. Ele entrou e bateu a porta com força em uma tentativa de trancar para sempre tudo o que existia do lado de fora. Cenas da batalha para encontrar um emprego misturavam-se em sua cabeça. Vozes, rostos, sensações, tentativas de homicídio imaginárias. Largou seu peso sobre a poltrona. Pôs a cabeça entre as mãos. Desespero. Raiva e frustração. Impedia-se de chorar. Chorar era abrir uma porta ao caos. Não cederia à pressão. Levantou a cabeça decidido a retomar o seu equilíbrio constante… Mas o que era aquilo? Os quadros não estavam alinhados! Veio-lhe a imagem da faxineira novamente, maldita mulher, certamente havia arranjado um jeito de entrar na casa e mexer nos quadros! Foi até a parede e começou a alinhá-los. A tarefa parecia mais difícil do que deveria, ele não conseguia manter todos em perfeita geometria. O que ela havia feito? Ele mexia em um, depois em outro e não adiantava, havia sempre um fora do lugar. Imaginava a faxineira às gargalhadas. Ela sabia muito bem o que tinha feito, havia arranjado uma maneira de romper com a harmonia, estava tudo errado, o abajur não combinava mais com a mesa que não estava mais alinhada ao parapeito da janela… Alguém batia na porta. Ele ignorou as batidas, não podia ceder à pressão, tinha que desvendar o segredo da faxineira, a fórmula que a fazia poder interromper a ordem. Mexia nos quadros, olhava em volta, mudava os objetos de lugar, coçava a cabeça. As batidas na porta tornavam-se mais fortes e insistentes, e ele podia enxergar a faxineira rindo ao lado do seu chefe, os dois abraçados às gargalhadas, como se observassem secretamente o seu desespero quase desequilibrado. Mas ele não cederia, seguiu movendo os objetos da sala como se fosse um grande quebra-cabeças, era necessário reencontrar a harmonia, mas cada gesto parecia apenas colaborar em torná-lo um desastrado ludíbrio da faxineira. As batidas na porta cessaram repentinamente. Um breve silêncio antecedeu o discreto barulho de uma chave girando na fechadura. O ruído era lento, a chave movimentava-se com calma, como se alguém se deleitasse ao fazê-lo. Ele parou de frente aos quadros desalinhados e acompanhou o som da porta se abrindo. Não ouvia passos, mas sentiu uma presença se aproximando. Recusou-se a olhar para trás. Seguia observando a discordância dos quadros. Sentiu seu visitante se aproximando com tranquilidade. Suspirou com o alívio de quem reconhece a derrota após uma longa batalha. E rendeu-se.