Flora

flora

por Cassiano Rodka

Flora não saía de casa por outro motivo que não fosse o rancho. Não via beleza fora de seu apartamento ultradecorado. Em meio a vasos chineses, porcelanas, bibelôs e rococós, a única outra respiração que se ouvia na casa era a de suas plantas. Sim, ela dizia que as ouvia respirar. Dizia a si mesma, é claro, pois não morava com mais ninguém e tinha esse costume de falar sozinha, para deleite dos vizinhos adolescentes do 22.

Flora acordava todos os dias às sete em ponto ao som do despertador que ganhara de sua vó. O som que imitava as badaladas do Big Ben lhe trazia um sorriso no rosto. Iniciar um dia era sempre uma aventura. Vestia suas pantufas de veludo e ia até a cozinha tomar um copo grande de leite morno. Logo depois, enchia o regador vermelho de água e molhava o único vaso que havia na cozinha, onde habitava um enorme girassol próximo à janela. Seguia pelo corredor até a sala, onde molhava as demais plantinhas, dando-lhes “bom dia” e conversando com cada uma. Quando era necessário, saía para fazer as compras antes da hora do almoço. Assim, poderia comer ao meio-dia e seguir seu dia sem preocupações. Pegava a lista do que estava faltando na casa e seguia até o elevador torcendo para descer sozinha. Às vezes, alguns vizinhos resolviam aparecer e descer também. “Por que não descem outra hora? Vão descer bem no meu horário!”, falava em voz alta para si mesma. Mas os vizinhos insistiam em ouvir aquilo que falara para si e sussurravam entre eles com caras desgostosas. Das bocas fofoqueiras, Flora sempre distinguia algumas palavras frequentes, como “gagá” e “dislexia”. “Gagá” ela bem sabia o que era, “dislexia” era palavra feia demais para estar em seu vocabulário. Parecia uma daquelas usadas pelo Doutor Afonso quando ela costumava frequentar o médico. Se “diagnóstico” já era palavra feia de doer, imagina o que vinha depois! “Esclerose”, “Alzheimer” e outras que é melhor nem lembrar. Flora não precisava de medicina. Ela podia muito bem cuidar de si mesma.

Quando voltava para casa, cuidava para preparar o almoço em tempo de comer ao meio-dia em ponto, quando o cuco do relógio de parede da sala aparecia para lhe avisar a hora. Com a comida servida na mesa, Flora sentava em uma poltrona verde, onde esperava o cuco chamá-la: “Cuco, cuco, cuco…”. Mas o que ela ouvia era “bom apetite”. Ela agradecia ao Sr. Cuco e sentava-se à mesa. Após lavar os pratos cuidadosamente e guardá-los nos armários de madeira, Flora deitava em sua cama e dormia. Acordava ao som do Big Ben às quatro da tarde e sentava-se na sala para assistir TV até a hora da janta. O ritual da janta era muito parecido com o do almoço, o que incomodava um pouco Flora. Por isso, olhava sempre pela janela entre uma garfada e outra, agradecendo à lua por tomar o lugar do sol e oferecer outro cenário para sua refeição. Antes de deitar, lia com dificuldade algum dos livros de sua pequena biblioteca. Já na cama, dava “boa noite” a si mesma e dormia.

Um dia, Flora acordou em desacordo consigo mesma. O despertador tocou o som das vozes debochadas dos adolescentes do 22. Flora não acordou sorrindo, pois não gostou daquela nova opção do velho relógio. Vestiu suas pantufas de vidro e foi até a cozinha tomar um vaso grande de veludo morno. Logo em seguida, encheu o girassol de leite e molhou a única janela que havia na cozinha. Seguiu com o girassol até a sala onde torceu as últimas gotas de leite em cima das outras plantinhas, que fofocavam entre si chamando-a de “diagnóstica”. Flora ficou chateada com as plantas e derrubou algumas no chão. “Suas ingratas!”, esbravejou. Sentia-se tonta e deitou-se na poltrona verde. Só percebeu que adormecera quando o Sr. Cuco a acordou dizendo: “Gagá, gagá, gagá…”. Flora sentia-se traída, todos aqueles aos quais ela dedicara a sua vida estavam debochando dela. “Gagá, gagá, gagá…”, meu Deus, era meio-dia!! E Flora não havia preparado a janta! A Doutora Lua já devia estar subindo no elevador para o desjejum e Flora não havia ainda preparado um delicioso prato de esclerose. Olhou aflita pela janela e avistou o sol. Pediu ajuda ao astro e tudo o que ele fez foi desejar-lhe “boa noite”.

Flora no chão.

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