por Cassiano Rodka
Fui pegar logo o pêssego.
Havia outras frutas no cesto, mas minha escolha foi essa. Peguei uma pequena faca na gaveta e sentei em um dos bancos da cozinha segurando-o com a mão esquerda. Ao firmar o dedão direito na casca aveludada para dar-lhe o primeiro corte, lembrei de ti. Me veio tua pele e teu cheiro na ponta dos dedos. Teu sorriso largo e tuas mãos macias e desajeitadas. Teu olhar trôpego escondendo-se atrás da xícara de café já vazia. Não era bem uma xícara, era teu escudo. Quebradiça defesa. Protegendo-te da minha conversa amigável, da minha evidente vontade de te tirar o véu. De percorrer teu passado, de me acomodar em teu futuro. Teus goles vazios preenchendo os silêncios. Teu olhar atento percorrendo meu rosto enquanto eu jogava palavras ao vento.
Afastei o pensamento.
Observei a primeira lasca cortada da fruta e coloquei-a num prato ao meu lado. Olhei a luz desmaiada que entrava pela janela. Voltei à fruta. Seus tons amarelos, suas manchas vermelhas, hematomas do tempo. As brigas, as lágrimas, teu choro miúdo. Cortei-lhe um pedaço da casca, rasguei-te um pedaço do véu. Fui despindo o pêssego com cuidado, cortando-lhe grandes lascas, descobrindo teus segredos. Encontrei-te muda, desnuda, perdida. Te estendi minha mão, meu perfume. Recebi teu desdém, teus medos morenos. E entrei no jogo com as peças comidas. Mordi um pedaço da fruta, amargo o teu gosto, desgosto sem cascas, as lascas no prato, teu rosto no escuro, futuro em pedaços, a mão pesada no pêssego, o sulco da fruta em meus dedos, teus beijos molhados, segredos, nos dentes um largo pedaço, abraços sustados, carentes, a polpa amarela, teus outros lados, o caroço à mostra, o final esperado.